OLHO - D'ÁGUA
poesia juvenil
Nos beirais de aguapés
em ninhos molhadinhos
peixe nasce
VEIO E VERTE
NA
RIMA DAS NASCENTES
Num buraquinho da terra
ou numa rocha fendida
tudo pode começar
1
Ali areia e brilha
silêncio na terra é fundo
ou verte num racho de rocha
pulsando águas no mundo
É um som devagarinho
para ouvidos bem quietos
uma gota caladinha
só se ouve bem de perto
Verte e vai veio e luz
já é musgo limo verde
risca trilha sinuosa
q'homem nenhum produz
2
Descem folhas distraídas
num comecinho de rio
na garupa vão as formigas
também aranhas sem fio
Pedras lisas vão ficando
o barro sendo lavado
areias se amontoando
no leito agora cavado
Veio aberto é longo e largo
foi arroio também ribeiro
vertente vertedouro
filão e vertedura
bebedouro de passarinhos
e desova de muitos sargos
3
E se afunda e escurece
ali no abrigo dos ventos
as sombras se enchem de asas
quando plaina e corre lento
Outros vertem ao seu encontro
em veios de alimento
juntam águas num mesmo rumo
feito frutos em maduramento
Agora é canto é cachoeira
fala sem tempo vaga-lumes
deita grande num esporão de rocha
é tororoma na clareira
4
A direção é fio de prumo
bica pedras levanta espumas
é queda e brilha inteiro
estende o canto e se avoluma
E se alarga e remansa
na planície se volteia
calmo e temeroso
lembrando cobra q'se enleia
O que foi veio e verteu
agora é rio e tem maré
maré de lua e peixes grandes
ninfas belas e mistérios
entre lendas apareceu
A CURVA DAS ÁGUAS INCHADAS
NA
LIRA DA COBRA GIGANTE
Quando a maré empanturra
os homens dos remos e da voga
caturrando firmes nos cavos
comem os pecados da lua
Quem foi q'inventou
tal lenda de tão grande
q'aonde ela se passa
se acresce e se expande?
Vem de longe?
D'um remo de sol dourado
de idade ancestral !
Como d'ouro é a vida?
Redondilha e abissal !
Foi longo e frio inverno
quando o rio adoeceu
as águas incharam tanto
que tudo envolta escureceu
Vem de longe?
Uma aldeia construída
mergulhada bem na curva
bebeu todas as desgraças
daquele mar de águas turvas
D'um remo de sol dourado
de idade ancestral !
Era sexta-feira Santa
quando um boi ali morreu
um punhal bem afiado
abriu sangue e escorreu
Como d'ouro é a vida?
Para marcar naquela história
o dilúvio q’ali chegou
no sangue do boi cortado
ninfa bela se lavou
Redondilha e abissal !
Foram dias e muita reza
pescador sem pescar
mas veio tira no céu dourado
num aviso d'água baixar
Vem de longe?
Ninfa bela entristeceu
sua pele perdeu o viço
assim povo d’aldeia
rendeu graças ao sacrifício
d'um remo de sol dourado
de idade ancestral !
Ficou velha em sete dias
encharcada de rugas feias
era sangue de boi agora
correndo quente em suas veias
Como d'ouro é a vida?
Nas mãos em concha se guardou
lá no meio do baixio
era agora seu lugar
entre os segredos do rio
Redondilha e abissal !
Ao descer a névoa grossa
devagarinho sumiu
percebeu que sua vida
se tornara um grande rio
Vem de Longe?
Quando foi de madrugada
lamento forte se ouviu
lá estava cobra gigante
nas areias do baixio
D'um remo de sol dourado
de idade ancestral !
povo crente entendeu
q’ ninfa serpente era
e muito sangue era preciso
pra tratar daquela fera
Como d'ouro é a vida?
Em coroa de lua cheia
sempre um boi deve morrer
correr sangue até o rio
pra serpente ali beber
Redondilha e abissal !
E nas sextas-feiras Santas
muitos corpos são lavados
em sangue quente e escorrente
de antigos bois sagrados
Quem foi q'inventou
tal lenda de tão grande
q'aonde ela se passa
se acresce e se expande?
Vem de longe?
D'um remo de sol dourado
de idade ancestral !
Como d’ouro é a vida?
Redondilha e abissal !
O RIO ADOECIDO
NA
ELEGIA DAS ÁGUAS MORTAS
Que versos hão de mudar
o curso deste rio?
( Paes Loureiro)
Venho de longe.
Do fundo mais distante,
lá onde a terra esconde
quietamente
os diamantes os mistérios.
Nos versos dos poetas
sou poesia.
Em meu corpo
casa de peixes e vida.
Me ensinaram mover
moinhos
e
movi,
me fizeram grandes
caminhos
e
navegaram,
me levaram às turbinas
e fiz luz.
Mas quando uma cidade
se alastra
numa curva de mim,
é lá que adoeço
é lá que reside a dor.
2
Fogo também me fere
me queima e dilacera.
Se me desmatam
assoreio
e me incho
e entristeço.
Os homens não entendem
quando inundo as cidades.
Os homens não compreendem
quando rumo novo curso.
Os homens,
precisam das águas.
Dói saber que os homens
não percebem os sentidos
das águas.
Penso que todo rio
haveria de guardar
em seu leito,
sob a flor dos igarapés
o dia limpo
na certeza das águas:
não a fétida calmaria
do lodo
sob os entulhos do lixo humano,
não a solidão
subjugada
em nome da contemporaneidade.
3
para ser transparente
um rio não carece de
decretos
passeatas
ou
propagandas oficiais.
Basta as árvores crescidas
nas margens
peixes
e flores.
Basta o homem abrir
o coração
sorver a relva úmida
e pensar rio.
4
Venho de longe.
Do fundo mais distante,
lá onde a terra esconde
quietamente
os diamantes os mistérios.
Me ensinaram mover
moinhos
e
movi,
me levaram às turbinas
e fiz luz,
me tornaram um grande
esgoto
e
morri.
Mas nos versos dos poetas
sou poesia (ainda).
E na música dos inconsequentes
e rudes
SOU MORTE
SOU ELEGIA
OLHO D'ÁGUA TORNADO MAR
NA
CANTORIA DOS DEUSES
À renovação
sobre asas de mar
abertas no chão
chega rio
na rota das estrelas
A CANÇÃO DO ESTUÁRIO
1
Lá vem rio de curso
longo,
vem mais fundo
vem quieto,
parece tão embirrado !
Vem chegando caudaloso,
vem undoso
e manchado,
cadê os aguapés ?
Rio umbroso e solidão,
vem mestiço
e zangado,
cadê os nhacundás
os amorés
e jundiás?
2
Lá vem rio
d'um olho d'água
feito lira nadança
da cobra
concisado nas estações
pra morrer adoecido
na fala triste das
elegias.
3
Chega rio de longe terra
n o e
i u s n
s o venta i
r
o
v
e
r
t
e
b
r
a
l e matizado
vem deitar no estuário
pra riscar linha imprecisa
como a que separa as
águas
dos homens e da terra
ungir os veios mortos
(sob a ária dos mutuns)
do canto mais puro e frio
ao sol mais cru de Netuno.
RIO E SAL
MAR
AGRIDOCE.
O MAR DE TODOS OS RIOS
1
Das areias e marinas
do mundo
num cochicho
de
alaga-mar
estende o canto
num rumo de fala
ainda mais que um espia.
Num urro das ondas
num cômoro
troveja no vazio d'areia
e solta o recado na brisa.
Nas sendas de agora mar e
f
u
n
d
o
brilhado em escamas douradas
um velho
velho de velho
também brilhado
de luz.
Dos mares e marés
do mundo
lavando vidas e terra
trançado em rimas e sal
recolhe pro reino das lendas
estórias de homens e almas.
2
O velho
velho de velho
de olhos ainda
em viço
de mãos em calos
e firmes
de vida encharcada
de mar
espia ventos e uivos
na reza do peixe pescar.
3
Lá fora no inchume
do mar
Canoeiro queima de sol
undívago a vela tesando
em seu barco coberto de limo.
Sobre o casco tecido
de ostras
timão firme no punho
pra onde Canoeiro vai?
Pra Ilha das Águas Mudas
onde o sol de tão amarelo
faz nascer pássaros
dourados.
4
Só Canoeiro conhece
a lida
o segredo e a sina
da ilha escondida.
O povo da pesca
pensa com medo
em almas perdidas
contam que choram
no fundo escuro
d’uma caverna
bem na goela espumante
d’uma pedra pontuda.
Então aparecem no meio
das ondas
montadas num tronco
não sei da onde
todo rachado e comido
pelos dentes compridos
e afiados
das almas famintas.
5
Canoeiro velho segue
cantando
lá
onde só gritam pássaros
cheios de fome,
a solidão amarrada
ao punho
eterno
como o mar
em seu assombro.
As gentes da pesca
sofrem no medo
se lavam de arruda
se pintam de alho
dizem que as almas
não temem os ventos
nem a cara sisuda
dos espantalhos.
6
Foi um velho veleiro
afundado
bem no rumo da ilha
onde os anos do tempo
indomado
criaram sem piedade
almas penadas e pássaros
aleijados.
Que silêncios foram aqueles
no escuro profundo
do mar?
Os anos das luas negras
bem no começo da História
quando as gentes ainda
pensavam
que as almas são estrelas
luminosas.
7
Antes era na Ilha
dos Aflitos
onde o medo grande
nascia
arrepiava se espalhando
pela enseada
pra eterna insônia
dos peixes.
De dia
rondavam barcos
de noite
afogavam estrelas
c
a
d
e
n
t
e
s
quando chovia
i
o a n
b vam nas o das
depois se guardavam
no sal d’areia.
8
Numa lua de coroa
bem cheia
chegou velha Benta
de rosário em punho
benzeu sete vezes
os cantos da ilha
deitou erva-santa
alecrim e benjoim
queimou chifre de bode
rabo de sereia
e num gemido ardente
e rouco
entrou no mar e
desapareceu.
9
Aquela desgraça
povo não entendia
era alma demais
para tanta agonia.
10
Mas outra desgraça
ainda chegou
quando a lua estufou
maré
num risco surgido
além das águas
vinda talvez
dos templos
das humanas labaredas.
A onda em bolhas estorou
numa alma gasta e torcida
que havia morrido
com raiva da vida.
Foi um custo povo atinar
q’alma
é vento em corpo d’água
que morte é trilha de estrelas
bem perto dos ventos
das almas
11
A casa do sol
é sempre infinito
as gentes do mar
são feitas de asas.
Lua gorda bebe
almas
também névoas de
ardentia
faz uivar cão danado
renova ondas caladas
na multiplicação das
espumas.
12
Já tinha sombra
da noite
um céu furado
de luzes
guaiás riscando
areia
quando a lua arranhou
outra alma
lá pros lados das águas
mansas.
O mar rugindo
nos cômoros
o povo escutando
na terra.
Cadê velha Benta
que não vem em hora
dessa?
13
Lá vem corpo estirado
boiando nas vagas
e afundando nos cavos
é Canoeiro ferido
de sol
como um anjo ferido
de estrelas.
O mar foi mais forte
em seus fundos
e assombros.
14
O povo em reza
o corpo acostando
no dia chegando
de sol espiando
tristeza n’aldeia
Canoeiro morrendo.
Na fúria do sol
no silêncio das feridas
um grito profundo
de desacordar mundo.
E assim foi povo
orando
fazendo prece pra Deus
de tudo
mas o velho
de velho
de alma ainda agarrada
continuou mudo.
Quando a fala do mar
aquietou
e maré foi abaixando
o velho
de velho
se embolou num berro
de dor
de rasgo mais fundo
era sua alma bem
fininha
que virou vela no rumo
dos ventos.
15
Quando a alma partiu
pra legião dos anjos
a falação das águas
levantou mais forte
de sete em sete
quebraram as ondas
n’areia
os peixes brilhantes chegavam
tontos
numa briga de estouro
e
encharco de mar.
16
São
os mares e marés
do mundo
lavando vidas e terra
trançado em rimas e sal
recolhendo pro reino das
lendas
estórias de homens e almas.
Pescador tem reza
forte:
o peixe posto na mesa
e o sonho aposto no peito.
Sempre que houver
uma jangada ou barco
no mar,
na areia
estirada
um rastro de suor e vida.
E enquanto existir homens
no mar,
um pensará peixe
outro peixe verá
e
um raio de sol levará
todos nos ombros.
Mas haverá indefinido
e poderoso vento
vem de longe
vem de ronco
vem do rumo dos perdidos
venta forte
e arrepia
venta musgo e visco azul
pra deitar manso
e terno
na cantoria dos deuses.
17
Veio
veio de longe
das entranhas da terra
um
olho d’água
tornado mar.
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