domingo, 20 de fevereiro de 2011

ALGUNS MOTIVOS PARA UM POEMA VAZADO


OU
A DANÇA DOS ALDEÕES SOB A LÍRICA DA PUNIÇÃO


EULÁLIA MARIA RADTKE-LAVRA LÍRICA-2000-Ed.Cultura em Movimento



Deve  haver algo mais
                        todavia,
Distante ou perto
                         todavia.

O vento está livre
dentro dessa disposição
dialética.
O que me agrada
é (às vezes) a possibilidade
da escolha.

Conheço o vento como meu,
com o mínimo possível
                                    de gestos.
                                         Todavia,
                                        algo mais 
                                     deve haver.

Que na figura humana
em cena,
 conheça-se a alquimia
vibrante
que o tempo subverte.

Que neste fim de século
possamos reafirmar o sentindo
essencial
nas evidências da vida,
não a matéria descartável.

Que se transforme a fantasia
pela fantasia maior
e se traduza na força da História
as idiossincrasias,
                           limpidamente,
como a água na fonte.

Os valores estão povoados
de bastilhas.
Não mais as imagens parasitárias.

Quero um tempo desnudo
sem decorações
                    sem decretos e excessos,
sem pirotecnias.

A idéia do vento livre
permanece em meus olhos.
Em qualquer lugar vejo-o
A intrigar-me.

Deve haver algo mais,
                     todavia.
Distante ou perto
                      todavia.

Já não cultivo ídolos.

Só a poesia de Neruda
-las cinco horas de la tarde-
que se sobrepõe à guerrilha
                                    de  Guevara
 e às luzes difusas dos Senderos.

Não mais a sociedade procurando
ninho
no útero da Mamãe Pátria,
-o mito de “Édipo paternalista”.

Não mais eleger os mitos
pelos parâmetros da ignorância,
-lixo podre há em todos os lugares
e castelos e princípios
                                     desmoronam.

Já não me embriago
diante das urnas eleitorais.
Estou mais cética e fria
e o deslumbramento mora longe.

Nossa cultura está
agonizante,
em coma irreversível
a nossa História.

Provincianos somos,
e ressentidos.
Somos bem os donos das cenas
mais patéticas
de uma sociedade.
E como atores de equívocos
criamos forças utópicas
e esquecemos  semiótica do drama.
_Até os eruditos já perderam a sutileza
e nem Marx resistiria.

Já não me embriago
diante das bandeiras.

No Brasil
a solidão é constitucional
e o osso do punho
é mais livre que o sonho
a alfabetização é uma nau
perigosamente à deriva.

As ratos estão roendo
as roupas puídas dos reis,
as rainhas estão cansadas
e meditar.
Os proletários mansos
estão gordos, inchados, todos

passivos e retraídos
em volta da mesa farta
da ignorância e intolerância
                                 generalizadas.

Ai, como dói ouvir os gemidos!
Dói nos olhos os signos
da  antevida
no grande palco do  teatro
da terra.
Dói em Goiânia, no Nordeste,
na Amazônia,
purga forte nas imensas
                                capitais.
Dói em toda a América Latina.

Elementar que doa.
Elementar que o choro seja efêmero.
Não elementar que a doçura
azede
ou que  a ternura se perca
em algum canto sombrio.

Mas diante de tudo isso
e muito mais,
da avareza e egocentrismo
possessivos
ainda bebemos coca-cola
e trançamos cordas anônimas
na cumplicidade com Deus.

Ai, como dói ouvir os gemidos!

Hoje os meus lábios não são mais
pintados de vermelho.
No lugar do batom
moram as minhas expectativas,
enquanto os cabelos assumem um
                                       tom prata
                                         sem brilho.

Nas mãos
descobri a pantomima
e a fragilidade no desenho
das palavras
quando escrevo um poema
abrasada pelos motivos tantos.

Sou poeta do século XX,
mulher
e parideira.
Mas  a dor maior reside nos mênstruos
antecipados da terra,

no sangue corrediço
das praças de combates,

na sala de estar do torturador
e nas mesas de imolação,

nos ditames da guerra fria
e nas mais severas formas
                                        de mutilação,
                                            sobretudo,
nos ritos selvagens da fraternidade.

Sou poeta do século XX,
mulher
parideira e cidadã.
E sei que há sol
sobre a América Latina
                              e tambores ressonantes
no mais fundo da memória.

Não desperdiço meu sangue
latíndio.
Tenho a minha História
que  está sendo contada.
Quando a escrevo, me lavo
e me perfumo.
Talvez serei uma surpresa
uma polêmica, um tótem.

Não desperdíço meu sangue
latíndio.
Freqüento as salas do mundo,
sento nos jantares de todas,
as casas
e sou peçonhenta nos templos
e guetos de todas as injustiças
                            e  estranhezas.

Ah!América,
pulso na fragilidade obscena
deste rótulo de terceiro mundista!

Carrego na boca
este gosto amargo do vinhoto
dos pobres.
No peito há um estranho ritmo
a temo abortar
antes da hora definitiva.

Ah América,
deve haver algo mais,
                        todavia
                     bem mais!

Para lhe dedicar um poema,
é preciso pensar nos homens,
                                   em Viracocha,
soluçar nas torres e labirintos
a terrível e ruidosa alegria
                            onde me espanto
                                           e verto.

Para lhe dedicar um poema
é preciso ser ampla,
                            contundente
                              sal e resina,
ser a própria sangria no coração.

É preciso, sobretudo,
ter sangue latino universal
e ser um franco-atirador
nos aquedutos da memória
                                  e emoção.

Somos todos contemporâneos
Com os equívocos.

No front,
a vanguarda se retirou
para o passado
e nos deparamos de mãos vazias.

A beleza está se evadindo.
Contidos,
estamos nos tornando
desastrosamente depressivos,
mortos,
antes mesmo da bomba atômica.

Tentemos fazer
e que não está
entre os ingredientes da bomba.
Busquemos a energia
que não figura no elemento
                                       atômico.

Vamos mergulhar na terra,
talvez,
lá reencontraremos a dignidade,
teremos motivos e forças
e rasgaremos então
toda resposta adequada com cheiro
                                     de desolação.

Entraremos tão fundo
nas indagações,
que  preferiremos a solidão assumida
em vez do barulho da festa.
Tão fundos,
que seremos a síntese, a súmula.

Não seremos fábula,
mas sim a metáfora repensada,
sem o heroísmo
tirando a capa  e a espada
e saltando para a página documental.

Não mais o cheiro do engôdo,
da fome,
o cortejo cotidiano
na miséria das relações
humanas,
o vírus da intolerância, do engano
pela fé ,
- a ferrugem dos sonhos.

Que nosso grito seja a faca,
 a palavra
o fio da lâmina.

Distante ou perto
                    todavia.

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