sábado, 12 de março de 2011

POEMAS DO LIVRO


ESPIRAL
( Ed. Fund. Catarinense de Cultura-1980)

Eulália M. Radtke



I

Não me julgue
Um pássaro torto

Julga o vôo
Que este pássaro
Faz
Para chegar
A ti

II

E a quietude
Da noite
Vem dizer-ne
Das cicatrizes

-Fio da fala
Que fere
Consola e marca


III

Nada levarei
Das andanças
Sobre a terra

E meu grito
Será antigo
Como a secreta
Sinfonia dos
ventos


IV

Não indago fantasmas
Nem a garganta seca
Do coração do mundo

Tenho meus rastros
E sonhos
E a leveza do vôo
Na hora da dor

V

Ah coração
-Tanque
Mergulhado
Pulso
E impulso

Aqui fora
Vagalumes são precisos
No apagar da tarde

VI

Costuro a solidão
Para não pendurar
Um sono torto

Vagamente
Como o silêncio
Que reveste o amor
Lençóis desafinados
desdobram-se
Como os sonhos do homem

VII

Como o rosto
Sem susto dos anjos
Herdei a quietude
das luas

É preciso a coragem
De um campo de espigas
É preciso saber das
sementes

Por fora
E por dentro
é preciso


VIII

Cantei em pedaços
Todas as demarcações
do tempo

Então pude dizer
Do fogo e da água
E a limpidez dos anjos


IX

Toma este sossego
-Palavra antiga
Mas reinventada
Pelo sangue novo
Que trago na memória

Toma esta lavra
Teu grito
É a casa do teu corpo

X

Ah!
Passos incertos
Não vim para julgar-te

Tu
Fontes de siglas
Signos e sina

Tu
Olho enviesado
Desalento
Sorriso murcho
Sobre as flores

Tu
Silêncio
Asa partida
Não vim para julgar-te
Estou distante e leve

XI

Arrancaram de mim
A certeza de tua
chama

Hoje
Te procuro
E me escondo
Por temor à claridade

XII

E a palavra prossegue
E poeiras se confundem

Ah!
Fortuna mendiga

O fio da foice
Te ameaça e te isola


XIII

Já não tenho a tua pressa
Oh passado

Já não tenho a tua rápida
Entrega do aconchego
-Já não tenho a ti

Do ciclo primeiro
Guardo o flash devastador
da claridade
Sob o mármore do teu
retrato

Do nosso encontro
Guardo uma distância


XIV

Difícil
Não fazer dos teus passos
o apoio

Difícil
Dos teus gestos
Não fazer coisas
da palavra

Ó paz
Como não festejar
Se fiz um acordo contigo?

Aqui findo o poema

Há no tempo
Raízes atando meus pés


XV

Vi tuas asas
Procurarem o espaço
Na distância

Vi tuas mãos distraídas
Perderem meu endereço

E vi no meu intento
Segredos ameaçando
O disfarce


XVI

Eu quis ser
Frases prontas
Viço de alegria
Sem importar-me
com rugas

Eu quis ser
A canção do adolescente
No meio da espera

Eu quis ser
Oceano e flor
Entre os olhos
E a distância

Mas fui um sonho
E morri inédito


XVII

Nada sei
Da fundeza da carne
E de céus dentro
de nuvens

Sei da ponte
Entre a palavra
E o coração


XVIII


Assim
Como a grama nascida
Agito as águas

Assim
Como o vento envolto
Arrasto o silêncio
Até o mais novo raio
De luz


XIX

Fale-me vento
Do galgar da palavra
A lugares distantes
e vigiados

Fale-me
Dos órfãos de ternura
Esboço de risos fatigados
No corpo e sonho do homem


XX

Quem curvar-se
Sobre este poema
Não tardará em abraçar
aqui

O circo
O riso
O estranho
O diverso
O triste
O brinquedo
O esconde-e-acha
O fruto da altura
Do sonho
O salto
O espanto
E o reverso dos olhos
Em ver
Que ante a paisagem dos anos
A infância
Ainda é o mesmo trapezista
Que não retornou do último
salto

XXI

Tu
Irmã dos rios e mares

Tu
Irmã das profundezas
E lavração da fala
Tu inquietação

Ah! Irmã dos sonhos
E acalantos
Eu te arremesso
Para o além do logo mais
E te aguardo
Aqui deste lado do improviso
Até que a árvore mais só
Desate a solidão
E floresçam as raízes

Aqui
Muito além do supérfluo
Eu te situo
E te aguardo
Nas paragens do sonho
Sem limite


XXII

Como é pequeno
Lá onde a terra
termina

Como é mistério
O homem
E a ânsia
De descobrir
sua rota

Quero ser para o mundo
Não apenas
Palavra fictícia
Mas um facho de luz
-Eterno motivo


XXIII

Com meus princípios
Eu te falarei
da justeza

E todo
Monumento fraterno
Que edifico


XXIV

Não vim para chorar
Minha infância

Não vim para abraçar
O manto

Vim para desenhar
A ternura
Onde o gesto
Faz sentido

Vim pra ti
Irmão

Recebe o telegrama
Dos meus olhos

- A paz


XXV

Venho do esforço
De caminhar
Dentro de mim

Venho de muitos
Vires

E sobretudo
Da conveniência
da
Razão e do amor


XXVI

Teço de ternura
Minha alegria
Enquanto o silêncio
Fecunda este vale
E a terra molhada
Me ensina
outra cor
outros sóis
outra esperança


XXVII


Puseram lançadeiras
em riste
E fui tear
E fui mãos

Ah! ressequida semeadura
E haja cantos
E haja choros
E muitos meninos
Desbotando seus sonhos

Estilhacei alegrias
Sóis e luzes
Em dias tontos
Perdi a cor da linha
E todas as fiaduras
Da minha paz

Ah! Irmãos
Também juntei os impossíveis
na esperança
O que virou soluços
Em um rio que vi depois

-É porta operária
Onde o tempo
É arma acesa e fantasma



XXVIII

Reparto o que me sobra
O que me gasta
E nestes dias de meia
Palavra
Nada detém a memória

Engulo o sonho
Que se quebra
Ou perde a raiz

E a solidão sangra
E me pasmo
Nestas heranças


XXIX

Penduro às pressas
Meus sonhos
Na hora da dor

Mas pergunto

Que esquina
Há de saber
Dos meus segredos?

Ah! curvatura de um tempo
Deixarei pelas ruas
Pelos ares

Pegadas de desejos
E um sinal de amor


XXX



Trazem-me estranhas
E vagas nostalgias
Aquilo que vi
E não foi sonhado
Os campos que cruzei
Sem ter cruzado

O que ficou em mim
Além dos ventos
É tua plainadura?



XXXI

Lavro a identidade
De meus passos
Equilibrados em sonos
E cansaços
É tarde
Está
Fechada a porta

Não vi
Quem açoitou meu sonho
E a imagem suspensa
No fundo de tudo
Me olha em silêncio
Pelo olho do mundo


XXXII

Irmão
Para pintares
O sonho

Terás que descobrir
A cor do mundo


XXIII

Existem pássaros
Ancorados
Na proa do meu sonho

E sei dos meus gritos
Do poema que faço
E do amor que refaço
Ao decifrar a solidão
Do mundo


XXXIV

O povo
Me pariu

A palavra
Está solta

Resta-me
Fazer do grito
Notícia
De sorrisos


XXXV

Arrancada
A raiz do pranto
Minhas frases construo

Não sou poeta
De quadro estúpido
Nem ponte de salvação

Sou o gemido
Da terra
Canto e desencanto
-Hino público


XXXVI

Tecer a palavra
É meu ofício

O sonho
É mais velho
Que meus ossos

E meu silêncio limpo
No tempo resiste


XXXVII

Não farei da morte
Versos corrompidos

Existem frases doídas
Como um rio
Que nunca teve peixes

Eu tenho barro nas mãos
flores
E a pele lenta
Do meu povo


XXXVIII

Não nego o soluço
Percorrendo-me
o corpo
Neste barco vou
E levo a tua dor
Terna e dura

XXXIX

Julguei ser fácil
Edificar-te
Apesar de haver
Esta flauta
A solução nos desvãos
Do teu peito

Ah!devastadora bússola
Relâmpago
raio
Intimidade líquida
Das águas
Estabeleço aqui
O tombo
E árvores retorcidas
No solo morno
da memória



XL

A distância
D e s d o b r a – s e
No espaço

Nestas asas
Vamos eu
E meu cão


XLI

Acordaram o silêncio
De minha porta
tão tímido
e imenso
do tamanho
de meus sonhos

Acordaram aquietude
De meu quarto
tão mansa
e larga
como o sono
dos ventos

Agora
Sou transeunte
_Ponte vergada
De sono
sob a mesa do mundo


XLII

Sou esta tropa de amores
Que aprendeu a fechar-se

Em mim
Como um bloco insistente
Que teima em sair
Na chuva
Mora um casal de velhos

Que sai para ver a cerca
E heróis enforcados


XLIII

Talvez
Meus sonhos
Sobrevivessem
Sob a identidade
De meus passos

Mas
Dói ouvir
O gemido da memória


XLIV

Joguei ao vento
Versos maduros

Fomos contemporâneos
No tempo
Na raça
No verso
E não o conheci


XLV

Terei a paz
Das espessas
Árvores

Terei mais silêncio
E terei a ti


XLVI


Derreteram impressões
Sobre a memória
Sobre o assoalho

E o menino triste
Lacrou o selo
Do riso solto
no rosto



XLVII


Ofertei-lhe
Meu olho esquerdo

A casa do coração
- estou ilhada


XLVIII

Descem os rios
E a solidão do
pássaro
É ponte e moinho
Nos intervalos
do homem


XVIX

Arrancar raízes
É adormecer
A casa do sonho


L

Repousa em mim
Um candelabro
De luz mansa

E na umidez do barro
Sob os pés
Sinto um homem
Cavando a solidez


LI

Fui planície
E montanha

Hoje
Um rio corre manso
Como o meu querer
Estar na vida


LII

Passei e refiz forças
Não usei de emissários
Nem códigos

Fiz minha própria
canção




LIII

Não escrevo poemas
ardentes

Eles sairão tostados
do forno



LIV

O vento
Move folhas

O silêncio
A certeza


LV

Não farei leilão
Dos meus sonhos

Construirei
Muitas portas
Com feitio
de esperança


LVI

Teci os olhos
Sobre a verdade

E alguém vestiu
O vento por mim


LVII

Tuas mãos
Ó níveo pássaro

Fia nos teares
Da noite
E desnuda o céu
De meus sonhos


LVIII

E esta areia
Que te cola
à terra

E esta areia
Desmanchada

Te mancha
Te consola

E te situa


LIX

Ah marcas caladas
desgarradas
Palavras
A cada corte do ontem

Tu
Irmão dos mistérios
Tu
Fadiga anoitecida
Tu
Mais que tua existência



LX

Não te peço
A claridade
Dos astros

Dá-me
A minha sombra
Que saiu à tua
Procura


LXI

Preciso a verdade
Espontânea

Para que eu resista
Em meus segredos


LXII

Nunca armei
Alçapões na vida

Deixe que amargue
Em mim
Este medo de vegetar


LXIII

Ah!
Estranho contentamento

Teu passo
Chega certeiro
Na rotulagem do dia

Por isso
Os meus sins
Meus alentos
E espasmos

Fazem de ti
Meu prato casto


LXIV


Tracei um horizonte
Na ponta de meus dedos

No canto do olho
Tracei um espaço
semi-infinito

Agora te abraço
E vejo a ponte
Que não vê o rio
e mais adiante
Em ti pereço

Ah!
Este preço do traço






LXV

Eu quero um amigo
Com seus próprios
Passos e sonhos

Eu quero a parede
Limpa
E desenhar minha
Herança


LXVI

Não os convido
À fonte
Dou-lhes a fonte


LXVII

Vem
Vem despertar
As cores
Do mundo
Até que o sono
Chegue morno


LXVIII

Ah!
Esta crucificação
Dos meios e desejos


LXIX

Contaram-me os anjos
Que do outro lado do
Rio
Dorme o sonho

-Meu esquivo silêncio


LXX

As coisas que amei

_ Espetáculo desbotado
Dançando no palco
Da memória


LXXI


Com pernas e penas
Meu invento
É estar envolta
No fantástico
Ninho humano

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