POEMAS DO LIVRO
                           ESPIRAL
                                           ( Ed. Fund. Catarinense de Cultura-1980)
                              
                                        Eulália M. Radtke
                                      
                                                   
 I
Não me julgue
Um pássaro torto
Julga o vôo
Que este pássaro
Faz 
Para  chegar
A ti
 
II
E a quietude
Da noite
Vem dizer-ne
Das cicatrizes
-Fio da fala
Que fere
Consola e marca
III
Nada levarei
Das andanças
Sobre a terra
E meu grito
Será antigo
Como a secreta
Sinfonia dos
               ventos
IV
Não indago fantasmas
Nem a garganta seca
Do coração do mundo
Tenho meus rastros
E sonhos
E a leveza do vôo
Na hora da dor
V
Ah coração
-Tanque
Mergulhado
Pulso
E impulso
Aqui fora
Vagalumes são precisos
No apagar da tarde
VI
Costuro a solidão
Para não pendurar
Um sono torto
Vagamente
Como  o silêncio
Que reveste o amor
Lençóis desafinados
             desdobram-se
Como os sonhos do homem
VII
Como o rosto
Sem susto dos anjos
Herdei a quietude
              das luas
É preciso a coragem
De um campo de espigas
É preciso saber das
                   sementes
Por fora
E por dentro
             é preciso
VIII
Cantei em pedaços
Todas as demarcações
                      do tempo
Então pude dizer
Do fogo e da água
E a limpidez dos anjos
IX
Toma este sossego
-Palavra antiga
Mas reinventada
Pelo sangue novo
Que trago na memória
Toma esta lavra
Teu  grito
É a casa do teu corpo
X
Ah!
Passos incertos
Não vim para julgar-te
Tu
Fontes de siglas
Signos e sina
Tu
Olho enviesado
Desalento
Sorriso murcho
Sobre as flores
Tu
Silêncio
Asa partida
Não vim para julgar-te
Estou distante e leve
XI
Arrancaram de mim
A certeza de tua
                 chama
Hoje
Te procuro
E me escondo
Por temor à claridade
XII
E a palavra prossegue
E poeiras se confundem
Ah!
Fortuna mendiga
O fio da foice
Te ameaça e te isola
XIII
Já não tenho a tua pressa
Oh passado
Já não tenho a tua  rápida
Entrega do aconchego
-Já não tenho a ti
Do ciclo primeiro
Guardo o flash devastador
                        da claridade
Sob o mármore do teu
                         retrato
Do nosso encontro
Guardo uma distância
XIV
Difícil
Não fazer dos teus passos
                            o apoio
Difícil
Dos teus gestos
Não fazer coisas
               da palavra
Ó paz
Como não festejar
Se fiz um acordo contigo?
Aqui findo o poema
Há no tempo
Raízes atando meus pés
XV
Vi tuas asas
Procurarem o espaço
Na distância
Vi tuas mãos distraídas
Perderem meu endereço
E vi no meu intento
Segredos ameaçando
O disfarce
XVI
Eu quis ser 
Frases prontas
Viço de alegria
Sem importar-me
                 com rugas
Eu quis ser
A canção do adolescente
No meio da espera
Eu quis ser
Oceano e flor
Entre os olhos 
E a distância
Mas fui um sonho
E morri inédito
XVII
Nada sei
Da fundeza da carne
E de céus dentro
                 de nuvens
Sei da ponte
Entre a palavra
E o coração
XVIII
Assim 
Como a grama nascida
Agito  as águas
Assim
Como o vento envolto
Arrasto o  silêncio
Até o mais novo raio
De luz
XIX
Fale-me  vento
Do galgar da palavra
A lugares distantes
                e vigiados
Fale-me 
Dos órfãos de ternura
Esboço de risos fatigados
No corpo e sonho do homem
XX
Quem curvar-se
Sobre este poema
Não tardará em abraçar
                              aqui
O circo
O riso 
O estranho
O diverso
O triste
O brinquedo
O esconde-e-acha
O fruto da altura
Do sonho
O salto
O espanto
E o reverso dos olhos 
Em ver
Que ante a paisagem dos anos
A infância
Ainda é o mesmo trapezista
Que não retornou do último
                            salto
XXI
Tu
Irmã dos rios e mares
Tu
Irmã das profundezas
E lavração da fala
Tu inquietação
Ah! Irmã dos sonhos
E acalantos
Eu te arremesso
Para o além do logo mais
E te aguardo
Aqui deste lado do improviso
Até que a árvore mais só
Desate a solidão
E floresçam as raízes
Aqui
Muito além do supérfluo
Eu te situo
E te aguardo
Nas paragens do sonho
Sem limite
XXII
Como é pequeno
Lá onde a terra 
                 termina
Como é mistério
O homem 
E a ânsia
De descobrir
               sua rota
Quero ser para o mundo
Não apenas
Palavra fictícia
Mas um facho de luz
-Eterno motivo
XXIII
Com meus princípios
Eu te falarei
                da justeza
E todo
Monumento fraterno
Que edifico
XXIV
Não vim  para chorar
Minha infância
Não vim para abraçar 
O manto
Vim para desenhar
A ternura
Onde o gesto
Faz sentido
 
Vim pra ti
Irmão 
 
Recebe o telegrama
Dos meus  olhos
- A paz
XXV
Venho do esforço
 De caminhar
Dentro de mim
Venho de muitos
Vires
E sobretudo
Da conveniência
                      da
Razão e do amor
XXVI
Teço de ternura
Minha alegria
Enquanto o silêncio
Fecunda este vale
E a terra molhada
Me ensina
               outra cor
               outros sóis
               outra esperança
XXVII
Puseram lançadeiras
                        em riste
E fui tear
E fui mãos
Ah! ressequida semeadura
E haja cantos
E haja choros
E muitos meninos
Desbotando seus sonhos
Estilhacei alegrias
Sóis e luzes
Em dias tontos
Perdi a cor da linha
E todas as fiaduras
Da minha paz
Ah! Irmãos
Também juntei os impossíveis
                           na esperança
O que virou soluços
Em um rio que vi depois
-É porta operária
Onde o tempo
É arma acesa e fantasma
XXVIII
Reparto o que  me sobra
O que me gasta
E nestes dias de meia 
Palavra
Nada detém a memória
Engulo o sonho
Que se quebra
Ou perde a raiz
E a solidão sangra
E me pasmo
Nestas heranças
XXIX
Penduro às pressas
Meus sonhos
Na hora da dor
Mas pergunto
Que esquina
Há de saber
Dos meus segredos?
Ah! curvatura de um tempo
Deixarei pelas ruas
Pelos ares
Pegadas de desejos
E um sinal de amor
XXX
Trazem-me estranhas
E vagas nostalgias
Aquilo que vi
E não foi sonhado
Os campos que cruzei
Sem ter cruzado
 
O que  ficou  em mim
Além dos ventos
É tua plainadura?
XXXI
Lavro a identidade
De meus passos
Equilibrados em sonos
E cansaços
É tarde
Está
Fechada a porta
Não vi
Quem açoitou meu sonho
E a imagem suspensa
No fundo de tudo
Me olha em silêncio
Pelo olho do mundo
XXXII
Irmão
Para pintares 
O sonho
Terás que descobrir
A cor do mundo
XXIII
Existem pássaros
Ancorados
Na proa do meu sonho
E sei dos meus gritos
Do poema que faço
E do amor que refaço
Ao decifrar a solidão
Do mundo
XXXIV
O povo
Me pariu
A palavra
Está solta
Resta-me
Fazer do grito
Notícia
De sorrisos
XXXV
Arrancada
A raiz do pranto
Minhas frases construo
Não sou poeta
De quadro estúpido
Nem ponte de salvação
Sou o gemido
Da terra
Canto e desencanto
-Hino público
XXXVI
Tecer a palavra
É meu ofício
O sonho
É mais velho
Que meus ossos
E meu silêncio limpo
No tempo resiste
XXXVII
Não farei da morte
Versos corrompidos
Existem frases doídas
Como um rio
Que nunca teve peixes
Eu tenho barro nas mãos
                         flores
E a pele lenta
Do meu povo
XXXVIII
Não nego o soluço
Percorrendo-me 
      o corpo
Neste barco vou
E levo a tua dor
Terna e dura
XXXIX
Julguei ser fácil
Edificar-te
Apesar de haver
Esta flauta
A solução nos desvãos
Do teu peito
Ah!devastadora bússola
Relâmpago
              raio
Intimidade líquida
Das águas
Estabeleço aqui
O tombo
E árvores retorcidas
No solo morno
                      da memória
XL
A distância
D e s d o b r a – s e 
No espaço
Nestas asas
Vamos eu
E meu cão
XLI
Acordaram o silêncio 
De minha porta
                         tão tímido
                         e imenso
                         do tamanho
                         de meus sonhos
Acordaram aquietude
De meu quarto
                tão mansa
                e larga
                como o sono
                dos ventos
Agora
Sou transeunte
_Ponte vergada
De sono
          sob a mesa do mundo
XLII
Sou esta tropa de amores
Que aprendeu a fechar-se
Em mim
Como um bloco insistente
Que teima em sair
Na chuva
Mora um casal de velhos
Que sai para ver a cerca
E heróis enforcados
XLIII
Talvez 
Meus sonhos
Sobrevivessem
Sob a identidade 
De meus passos
Mas
Dói ouvir
O gemido da memória
XLIV
Joguei  ao vento
Versos maduros
Fomos contemporâneos
No tempo
Na raça
No verso
E não o conheci
XLV
Terei a paz 
Das espessas
Árvores
Terei mais silêncio
E terei a ti
XLVI
Derreteram impressões
Sobre a memória
Sobre o assoalho
E o menino triste
Lacrou o selo
Do riso solto
               no rosto
XLVII
Ofertei-lhe
Meu olho esquerdo
A casa do coração
- estou ilhada
XLVIII
Descem os rios
E a solidão do 
              pássaro
É ponte e moinho
Nos intervalos 
                 do homem
XVIX
Arrancar raízes
É adormecer
A casa do sonho
L
Repousa em mim
Um candelabro
De luz mansa
E na umidez  do barro
Sob os pés
Sinto um homem
Cavando a solidez
LI
Fui planície
E montanha
Hoje
Um rio corre manso
Como o meu querer
Estar na vida
LII
Passei e refiz forças
Não usei de emissários
Nem códigos
Fiz minha própria
                           canção
LIII
Não escrevo poemas 
                          ardentes
Eles sairão tostados
                   do forno
LIV
O vento 
Move folhas
O silêncio
A  certeza
LV
Não farei leilão
Dos meus sonhos
Construirei
Muitas portas
Com feitio 
               de esperança
LVI
Teci os olhos
Sobre a verdade
E alguém vestiu
O vento por mim
LVII
Tuas mãos
Ó níveo pássaro
Fia nos teares
Da noite
E desnuda o céu
De meus sonhos
LVIII
E esta areia
Que te cola
          à terra
E esta areia 
Desmanchada
Te mancha
Te consola
E te situa
LIX
Ah marcas caladas
                 desgarradas
Palavras
A cada corte  do ontem
Tu 
Irmão dos mistérios
Tu
Fadiga  anoitecida
Tu 
Mais que tua existência
LX
Não te peço
 A claridade
 Dos astros
Dá-me
A minha sombra
Que saiu à tua
Procura
LXI
Preciso a verdade
Espontânea
Para que eu resista
Em meus segredos
LXII
Nunca armei
Alçapões na vida
Deixe que amargue
Em mim
Este medo de vegetar
LXIII
Ah!
Estranho contentamento
Teu passo
Chega certeiro
Na rotulagem do dia
Por isso
Os meus sins
Meus alentos
E espasmos
Fazem de ti 
Meu prato casto
LXIV
Tracei um horizonte
Na ponta de  meus dedos
No canto do olho
Tracei um espaço
              semi-infinito 
Agora te abraço
E vejo a ponte
Que não vê o rio
               e mais adiante
Em ti pereço
Ah!
Este preço do traço
LXV
Eu quero um amigo
Com seus próprios 
Passos e sonhos
Eu quero a parede 
Limpa
E desenhar minha
Herança
LXVI
Não os convido 
À fonte
Dou-lhes a fonte
LXVII
Vem
Vem despertar
As cores
Do mundo
Até que o sono
Chegue morno
LXVIII
Ah!
Esta crucificação
Dos meios e desejos
LXIX
Contaram-me os anjos
Que do outro lado do 
                        Rio
 Dorme  o sonho
-Meu esquivo silêncio
LXX
As coisas que amei
_ Espetáculo desbotado 
Dançando no palco
Da memória
LXXI
Com pernas e penas
Meu invento
É estar envolta
No fantástico
Ninho humano
 
 
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